Caso Okpabi contra Shell no Reino Unido

Sobre as autoras:

A Ana Duarte é aluna do Mestrado em Direito e Gestão da NOVA School of Law. É licenciada pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e frequentou uma Pós-Graduação Avançada em Direito Societário. Desde 2020 que faz parte da equipa de Projectos Educativos da HeForShe Lisboa e tem vindo a trabalhar em projectos relacionados com a igualdade de género, como “WeForEducation” e “Mentoring The Future”. Para além disto, a Ana tem como principais áreas de interesse as áreas de Responsabilidade Social das Empresas e Finanças Empresariais Sustentáveis.

Rafaela Oliveira é licenciada em direiro pela Universidade de Lisboa e é atualmente aluna no mestrado em Direito e Gestão na NOVA School of Law. Ser membro do grupo da Amnistia Internacional na sua escola secundária conferiu-lhe perspetiva acerca dos problemas de Direiros Humanos. As suas áreas de interesse são Direiros Humanos, Sustentabilidade e como combinar os dois no mundo do negócio

 

 

No passado dia 12 de fevereiro, cerca de cinco anos após a queixa ter sido intentada, o Supremo Tribunal de Justiça do Reino Unido emitiu a decisão jurisdicional no caso Okpabi.

Esta decisão vem na sequência da decisão histórica proferida, há umas semanas, pelo Tribunal de Recurso de Haia, no qual a empresa Shell foi ordenada a compensar os agricultores nigerianos por derrames no rio Níger. A nossa análise a este caso pode ser encontrada aqui.

 

Os incidentes

O processo foi originado por comunidades nigerianas que viram as suas vidas afetadas por derrames de petróleo no delta do rio Níger. Os sucessivos vazamentos de petróleo causaram grandes danos ambientais, poluindo gravemente o solo e a água da região. Estas ocorrências tornaram as fontes de água locais impróprias tanto para consumo como para atividades agrícolas e piscatórias. O Programa das Nações Unidas para o Ambiente informou, em 2011, que poderá levar 25 a 30 anos para limpar toda a poluição causada pelos derrames no delta do rio Níger (1).

No seguimento destes desastres, as comunidades Ogale e Bille intentaram o processo nos tribunais ingleses em dezembro de 2015. No processo Ogale os requerentes são os cerca de 40,000 residentes locais, liderados pelo líder da comunidade HRH Emere Godwin Bebe Okpabi. O segundo processo conta com 2,335 indivíduos, residentes na remota aldeia ribeirinha de Bille. Em ambos os processos as vítimas reclamaram que os vazamentos tinham sido causados por negligência do operador do oleoduto, The Shell Petroleum Development Company of Nigeria Ltd (“SPDC”), que explorava os canais em nome de um consórcio, no qual detinha 30% de participação. Acrescentaram ainda que, na sequência dos derrames, não existiu limpeza ou remédio apropriado.

O caso foi intentado nos tribunais ingleses contra a subsidiária nigeriana e contra a empresa-mãe, estabelecida no Reino Unido, Royal Dutch Shell Plc (“RDS”). Os requerentes argumentaram que a empresa-mãe lhes devia um dever de cuidado, de acordo com o direito comum, uma vez que esta exerceu controlo significativo sobre os aspetos materiais das operações da sua subsidiária, e/ou assumiu responsabilidade pelas atividades da SPDC, tendo falhado em proteger as comunidades contra o risco de danos previsíveis decorrente daqueles procedimentos (2). Em relação à RDS, a jurisdição dos tribunais ingleses estava assegurada com base no Regulamento Bruxelas I Reformulado uma vez que a empresa estava sediada no Reino Unido. De forma a que o caso contra a SPDC fosse ouvido no Reino Unido, os requerentes alegaram que esta seria uma “parte necessária ou adequada” nos termos do parágrafo 3.1(3) da Diretiva Prática 6B. A ré RDS contestou a jurisdição do Reino Unido e, caso não procedesse, argumentou ainda que não devia qualquer dever de cuidado aos requerentes.

Desta forma, o caso apenas podia continuar caso a empresa-mãe fosse estabelecida como legitima ré, de forma a ancorar a jurisdição nos tribunais ingleses, com a subsidiária SPDC associada como parte necessária e adequada. O verdadeiro teste era saber se existia uma questão real entre as partes e se as reivindicações dos requerentes tinham uma perspetiva real de sucesso. 

 

As decisões anteriores

Em janeiro de 2017, o Tribunal Superior, apesar de considerar que teria jurisdição para julgar o caso contra a empresa-mãe, achou que não era razoavelmente defensável a existência de qualquer dever de cuidado da RDS para com as comunidades (3). Já não seria então possível a empresa-mãe servir de âncora jurisdicional quanto às reivindicações contra a sua subsidiária uma vez que as condições expostas no artigo parágrafo 3.1(3) da Diretiva Prática 6B não estavam preenchidas e a subsidiária SPCD não seria uma “parte necessária e adequada”. 

 A decisão foi mantida pelo Tribunal de Recurso cerca de um ano depois que, apesar de considerar que o Tribunal Superior tinha cometido alguns erros na maneira como abordou as provas, ainda assim concluiu da mesma forma. Considerou que não havia qualquer discussão de que a RDS tivesse um dever de cuidado para com as vítimas.

 

Últimos desenvolvimentos

No dia 12 de fevereiro, o Supremo Tribunal do Reino Unido decidiu, unanimemente, a favor dos autores no caso Okpabi e outros contra a Royal Dutch Shell (RDS) e outros

Os autores, estrategicamente, alteraram a sua argumentação tendo em conta a decisão histórica do caso Lungowe contra Vedanta (4), que estabeleceu quatro possíveis circunstâncias através das quais se poderia demonstrar a existência de um dever de cuidado (“duty of care”) da empresa-mãe para com os lesados das atividades da sua subsidiária. Assim, os autores alegaram as seguintes circunstâncias: a RDS ter assumido a gestão ou gestão conjunta da atividade relevante da SPDC; a RDS ter fornecido aconselhamento defeituoso e/ou promulgado políticas defeituosas relacionadas com a segurança/ambiente, em todo o grupo, e que foram implementadas pela subsidiária em questão; a RDS ter promulgado políticas de segurança/ambiente para todo o grupo e ter adotado medidas para assegurar a sua implementação na SPDC; a RDS ter exercido um determinado grau de supervisão e controlo da SPDC. Os argumentos apresentados procuraram demonstrar que a RDS interveio na atividade da subsidiária de tal forma que se permite retirar um dever de cuidado para com os indivíduos prejudicados pela SPDC.

No que diz respeito às provas, os autores utilizaram factos como o de a RDS ter aplicado políticas de segurança e saúde obrigatórias em todo o grupo; documentos como os relatórios de sustentabilidade publicados pela Shell; e, ainda outros materiais onde se demonstra que a RDS tinha conhecimentos detalhados sobre os danos causados pela sua subsidiária e que administração da empresa-mãe exercia o controlo sobre as práticas ambientais, de segurança e de saúde. 

Quanto aos arguidos, estes argumentaram que a RDS não poderia ser responsável pelos danos causados visto estes se deverem a sabotagem, roubo e interferência nos oleodutos. Quanto ao controlo exercido sobre as subsidiárias, arguiram que apesar de terem políticas e diretrizes obrigatórias e em vigor para todo o grupo, a implementação destas estava a cargo das respetivas subsidiárias. Afirmaram, ainda, que mesmo tendo a Shell uma política que solicita às suas subsidiárias a realização de auditorias nas áreas da saúde e da segurança, quem detém o controlo sobre os oleodutos e as infraestruturas das subsidiárias são as próprias e não a empresa-mãe.

O Supremo Tribunal foi bastante crítico da decisão do Tribunal de Recurso. Primeiro por este ter conduzido um “mini-julgamento” com um inquérito factual detalhado quando, na fase jurisdicional do processo, não o deveria ter feito. Em seguida, discordaram da conclusão do Tribunal de Recurso de que não haveria uma verdadeira questão a ser julgada. Esta conclusão tinha como base o teste de três fases do caso Caparo (5), onde é feita uma análise da proximidade e da verificação de que impor um dever de cuidado (“duty of care”) à empresa-mãe é equitativo, justo e razoável. Neste sentido, o Supremo Tribunal defendeu uma análise mais abrangente desta problemática e concluiu que apesar de não existir nenhum teste especial para averiguar a responsabilidade civil da empresa-mãe pelas atividades da sua subsidiária, as quatro circunstâncias apresentadas, com base no Caso Vedanta, serviram de guia para o estabelecimento de um dever de cuidado (“duty of care”). Desta forma, declarou-se a competência dos tribunais ingleses para julgarem o caso, permitindo às comunidades de Ogale e Bille apresentar os pedidos legais de compensação e de limpeza contra a empresa-mãe, a RDS, e contra a sua subsidiária nigeriana.

Este caso deixa-nos com importantes questões para refletir. Primeiro, fica ainda a incerteza de como a questão da jurisdição será entendida em futuros casos, com contornos semelhantes aos deste. Temos de ter em mente, que o caso em análise iniciou-se quando o Reino Unido fazia parte da União Europeia e, por isso, os autores puderam utilizar o Regulamento Bruxelas I para chegarem aos tribunais do Reino Unido. Segundo, o caso Okpabi mostra-nos as fragilidades ainda existentes na supervisão feita pelas empresas-mãe às atividades das suas subsidiárias e a consequente necessidade de realizarem as diligências devidas. Não nos restam dúvidas de que esta decisão foi mais um passo importante na luta por Justiça e resta-nos a esperança de que os danos causados possam, de alguma forma, ser remediados.

 

 

Referências:

Aristova, E. (2021, Fevereiro). UK Okpabi et al v Shell: UK Supreme Court Reaffirms Parent Companies May Owe a Duty of Care Towards Communities Impacted by their Subsidiaries in Third Countries. Disponível em: <http://opiniojuris.org/2021/02/16/uk-okpabi-et-al-v-shell-uk-supreme-court-reaffirms-parent-companies-may-owe-a-duty-of-care-towards-communities-impacted-by-their-subsidiaries-in-third-countries/>.

Caparo Industries pIc v Dickman & Ors(08 February 1990), UKHL 2.

Gibson Dunn (2021, Fevereiro). Okpabi v Shell: Clarification from the English Supreme Court on Jurisdiction and Parent Company Liability. Disponível em: < https://www.gibsondunn.com/okpabi-v-shell-clarification-from-the-english-supreme-court-on-jurisdiction-and-parent-company-liability/>.

Kennedys (2021, Fevereiro). Okpabi v Shell – a new era for global environmental claims?. Disponível em: <https://kennedyslaw.com/thought-leadership/case-review/okpabi-v-shell-a-new-era-for-global-environmental-claims/>.

Leigh Day (2021, Fevereiro). Supreme Court rules that polluted Nigerian communities can sue Royal Dutch Shell in the English courts. Disponível em:< https://www.leighday.co.uk/latest-updates/news/2021-news/supreme-court-rules-that-polluted-nigerian-communities-can-sue-royal-dutch-shell-in-the-english-courts/?utm_campaign=coschedule&utm_source=twitter&utm_medium=LeighDay_Law>.

Norton Rose Fullbright (2021, Fevereiro). UK Supreme Court clarifies issues on parent company liability in Okpabi and others v Royal Dutch Shell Plc.. Disponível em:<https://www.nortonrosefulbright.com/en-gb/knowledge/publications/b7b82aeb/uk-supreme-court-clarifies-issues-on-parent-company-liability#.YC3CUTtuVfo.linkedin>.

Okpabi & Ors v Royal Dutch Shell Plc & Anor (12 February 2021), UKSC 3.

Okpabi & Ors v Royal Dutch Shell Plc & Anor (26 January 2017), EWHC 89 (TCC).

UN News (2011, Agosto). Cleaning up Nigerian oil pollution could take 30 years, cost billions – UN. Disponível em:<https://news.un.org/en/story/2011/08/383512-cleaning-nigerian-oil-pollution-could-take-30-years-cost-billions-un>.

Vedanta Resources Plc and Konkola Copper Mines Plc v Lungowe and Ors. (10 Apr 2019), UKSC 20.

Notas de rodapé:

  1. UN News, (2011, Agosto). Cleaning up Nigerian oil pollution could take 30 years, cost billions.
  2. Okpabi & Ors v Royal Dutch Shell Plc & Anor [2021] UKSC 3 (12 February 2021), para 7.
  3. Okpabi & Ors v Royal Dutch Shell Plc & Anor [2017] EWHC 89 (TCC) (26 January 2017), para 122.
  4. Vedanta Resources Plc and Konkola Copper Mines Plc v Lungowe and Ors. [2019] UKSC 20 (10 Apr 2019).
  5. Caparo Industries pIc v Dickman & Ors [1990] UKHL 2 (08 February 1990).

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Citação sugerida: A. Duarte, e R. Oliveira “Caso Okpabi contra Shell no Reino Unido”, Nova Centre on Business, Human Rights and the Environment Blog, 22 Fevereiro 2021.